UM OLHAR DE SAUDADE: Que é feito dos barcos e dos pescadores que havia em Cascais?
É sempre com nostalgia e, agora, cada vez mais com certa tristeza, que contemplo imagens como a deste postal, de finais dos anos 40, em edição do fotógrafo italiano Valesi Bonetti.
Como sabem algumas das pessoas que me seguem há mais tempo, é estreita a minha ligação às actividades marítimas em Cascais, particularmente a partir de 1994 , ano em que ajudei a fundar e presidi à Associação de Armadores e Pescadores da vila.
Quando, hoje em dia, me sento à beira da Praia dos Pescadores (como já foi conhecida, ou por Praia da Ribeira e por Praia do Peixe), e olho para o mar e o areal a partir deste mesmo ângulo, é com desolação que já não vejo as tradicionais chatas de Cascais repousando na areia, um grande número (como outrora) de pequenas motoras fundeadas na baía, as artes a secar penduradas nas varas de madeira ou os veteranos lobos-do-mar aprontando as redes para novas fainas.
Actualmente, vejo apenas banhistas ao sol e, quanto a embarcações, são sobretudo de recreio, além de meia-dúzia de pequenos barcos de genuínos pescadores. À parte isso, um depósito que é mais um amontoado, inestético e insalubre. de aprestos e material de pesca junto à muralha que sobe para a Cidadela.
Do velho mundo da pesca, tudo vai desaparecendo, salvo uma ou outra referência que sobrevive na toponímia. Já se concretizaram projectos para que o edifício da velha lota seja destruído e dê lugar a um grande imóvel. Os pescadores já só podem atracar em cais durante a maré cheia. Tem-se falado até na possibilidade de a Praia dos Pescadores deixar de funcionar como porto de abrigo e na concessão total da praia para fins exclusivamente balneares.
Há muito que terminou o ritual de pessoas acorrendo ao areal para comprarem peixe na hora do desembarque, as Festas do Mar (a que eu sempre estive tão ligado) foram descaracterizadas: já não desfilam as grandes traineiras engalanadas e transportando os andores, que vinham de vários portos da costa portuguesa a dar testemunho de verdadeira fé.
No seu lugar, surgem mesmo motas de água e pranchas de windsurf! Até chegou a estar em causa que desfilasse a imagem centenária da Senhora dos Navegantes, da qual os pescadores de Cascais são devotos há vários séculos.
Sintomático é também que, entre os restaurantes da Baixa, só subsistam poucos nomes como O Pescador, Beira-Mar ou Baía do Peixe,. Simultaneamente, proliferam hamburguerias, pizzarias e estabelecimentos de cozinha chinesa, nepalesa, mexicana, tailandesa, japonesa, brasileira e sei lá que mais…
As velhas tabernas de pescadores vão rareando e, nas igrejas, já ninguém vai depositar ex-votos alusivos às fainas marinhas.
A habitação social, que começou a ser desenvolvida nos anos 60 exclusivamente para os pescadores e suas famílias, é não raro ocupada por gente de outras proveniências sem qualquer ligação às actividades do mar. Percorrendo as ruas desses bairros, só nos lembramos de que quem lá viveu foi gente ligada à vida marítima por causa dos painéis de azulejos fixados nas paredes, com representação de barcos ou da Nossa Senhora dos Navegantes, e, espreitando para os quintais, alguns aprestos navais, alcatruzes, bóias, âncoras, covos, e destroços de botes e barcas ao abandono.
“Cascais Vila de Reis e Pescadores” é hoje apenas um slogan para atrair turistas. Os Reis já partiram há muito, e os pescadores vão pelo mesmo caminho. No futuro, quando os nossos netos olharem para o brasão da vila, vão perguntar o que é que querem dizer aquelas ondas prata e verde, símbolo do mar, cobertas por uma rede dourada, representativa da actividade piscatória.
*NELSON FERNANDES recorda em Cascais24Horas duas vezes por semana factos e curiosidades que marcaram outrora Cascais e fazem parte da história de esta vila de reis e pescadores.
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